quarta-feira, 11 de julho de 2007

A POLÍTICA E O MEDO - POSSIBILIDADE DE UMA ANÁLISE HOBBESIANA DO PENSAMENTO DE NELSON RODRIGUES



O ex-covarde
Nélson Rodrigues

Entro na redação e o Marcelo Soares de Moura me chama. Começa: - "Escuta aqui, Nélson. Explica esse mistério." Como havia um mistério, sentei-me. Ele começa: - "Você, que não escrevia sobre política, por que é que agora só escreve sobre política?" Puxo um cigarro, sem pressa de responder. Insiste: - "Nas suas peças não há uma palavra sobre política. Nos seus romances, nos seus contos, nas suas crônicas, não há uma palavra sobre política. E, de repente, você começa suas "confissões". É um violino de uma corda só. Seu assunto é só política. Explica: - Por quê?"
Antes de falar, procuro cinzeiro. Não tem. Marcelo foi apanhar um duas mesas adiante. Agradeço. Calco a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro. Digo: - "É uma longa história." O interessante é que outro amigo, o Francisco Pedro do Couto, e um outro, Permínio Ásfora, me fizeram a mesma pergunta. E, agora, o Marcelo me fustigava: - "Por quê?" Quero saber: - "Você tem tempo ou está com pressa?" Fiz tanto suspense que a curiosidade do Marcelo já estava insuportável.
Começo assim a "longa história": - "Eu sou um ex-covarde." O Marcelo ouvia só e eu não parei mais de falar. Disse-lhe que, hoje, é muito difícil não ser canalha. Por toda a parte, só vemos pulhas. E nem se diga que são pobres seres anônimos, obscuros, perdidos na massa. Não. Reitores, professores, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. E também os jornais e as revistas, o rádio e a tv. Quase tudo e quase todos exalam abjeção.
Marcelo interrompe: - "Somos todos abjetos?" Acendo outro cigarro: - "Nem todos, claro." Expliquei-lhe o óbvio, isto é, que sempre há uma meia dúzia que se salve e só Deus sabe como. "Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo." E por que essa massa de pulhas invade a vida brasileira? Claro que não é de graça nem por acaso.
O que existe, por trás de tamanha degradação, é o medo. Por medo, os reitores, os professores, os intelectuais são montados, fisicamente montados, pelos jovens. Diria Marcelo que estou fazendo uma caricatura até grosseira. Nem tanto, nem tanto. Mas o medo começa nos lares, e dos lares passa para a igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí para o romance, para o teatro, para o cinema. Fomos nós que fabricamos a "Razão da Idade". Somos autores da impostura e, por medo adquirido, aceitamos a impostura como a verdade total.
Sim, os pais têm medo dos filhos, os mestres dos alunos. o medo é tão criminoso que, outro dia, seis ou sete universitários curraram uma colega. A menina saiu de lá de maca, quase de rabecão. No hospital, sofreu um tratamento que foi quase outro estupro. Sobreviveu por milagre. E ninguém disse nada. Nem reitores, nem professores, nem jornalistas, nem sacerdotes, ninguém exalou um modestíssimo pio. Caiu sobre o jovem estupro todo o silêncio da nossa pusilanimidade.
Mas preciso pluralizar. Não há um medo só. São vários medos, alguns pueris, idiotas. O medo de ser reacionário ou de parecer reacionário. Por medo das esquerdas, grã-finas e milionários fazem poses socialistas. Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário. É o medo que faz o Dr. Alceu renegar os dois mil anos da Igreja e pôr nas nuvens a "Grande Revolução" russa. Cuba é uma Paquetá. Pois essa Paquetá dá ordens a milhares de jovens brasileiros. E, de repente, somos ocupados por vietcongs, cubanos, chineses. Ninguém acusa os jovens e ninguém os julga, por medo. Ninguém quer fazer a "Revolução Brasileira". Não se trata de Brasil. Numa das passeatas, propunha-se que se fizesse do Brasil o Vietnã. Por que não fazer do Brasil o próprio Brasil? Ah, o Brasil não é uma pátria, não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem. Há também os que o negam até como valor plástico.
Eu falava e o Marcelo não dizia nada. Súbito, ele interrompe: - "E você? Por que, de repente, você mergulhou na política?" Eu já fumara, nesse meio-tempo, quatro cigarros. Apanhei mais um: - "Eu fui, por muito tempo, um pusilânime como os reitores, os professores, os intelectuais, os grã-finos etc, etc. Na guerra, ouvi um comunista dizer, antes da invasão da Rússia: - "Hitler é muito mais revolucionário do que a Inglaterra." E eu, por covardia, não disse nada. Sempre achei que a história da "Grande Revolução", que o Dr. Alceu chama de "o maior acontecimento do século XX", sempre achei que essa história era um gigantesco mural de sangue e excremento. Em vida de Stalin, jamais ousei um suspiro contra ele. Por medo, aceitei o pacto germano-soviético. Eu sabia que a Rússia era a antipessoa, o anti-homem. Achava que o Capitalismo, com todos os seus crimes, ainda é melhor do que o Socialismo e sublinho: - do que a experiência concreta do Socialismo,
Tive medo, ou vários medos, e já não os tenho. Sofri muito na carne e na alma. Primeiro, foi em 1929, no dia seguinte ao Natal. Às duas horas da tarde, ou menos um pouco, vi meu irmão Roberto ser assassinado. Era um pintor de gênio, espécie de Rimbaud plástico, e de uma qualidade humana sem igual. Morreu errado ou, por outra, morreu porque era "filho de Mário Rodrigues". E, no velório, sempre que alguém vinha abraçar meu pai, meu pai soluçava: - "Essa bala era para mim." Um mês depois, meu pai morria de pura paixão. Mais alguns anos e meu irmão Joffre morre. Éramos unidos como dois gêmeos. Durante 15 dias, no Sanatório de Correias, ouvi a sua dispnéia. E minha irmã Dorinha. Sua agonia foi leve como a euforia de um anjo. E, depois, foi meu irmão Mário Filho. Eu dizia sempre: - "Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mário." Teve um enfarte fulminante. Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha, não sou assim. E, por fim, houve o desabamento de Laranjeiras. Morreu meu irmão Paulinho e, com ele, sua esposa Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto, a sua sogra, D. Marina. Todos morreram, todos, até o último vestígio.
Falei do meu pai, dos meus irmãos e vou falar também de mim. Aos 51 anos, tive uma filhinha que, por vontade materna, chama-se Daniela. Nasceu linda. Dois meses depois, a avó teve uma intuição. Chamou o Dr. Sílvio Abreu Fialho. Este veio, fez todos os exames. Depois, desceu comigo. Conversamos na calçada do meu edifício. Ele foi muito delicado, teve muito tato. Mas disse tudo. Minha filha era cega.
Eis o que eu queria explicar a Marcelo: - depois de tudo que contei, o meu medo deixou de ter sentido. Posso subir numa mesa e anunciar de fronte alta: - "Sou um ex-covarde." É maravilhoso dizer tudo. Para mim, é de um ridículo abjeto ter medo das Esquerdas, ou do Poder Jovem, ou do Poder Velho ou de Mao Tsé-tung, ou de Guevara. Não trapaceio comigo, nem com os outros. Para ter coragem, precisei sofrer muito. Mas a tenho. E se há rapazes que, nas passeatas, carregam cartazes com a palavra "Muerte", já traindo a própria língua; e se outros seguem as instruções de Cuba; e se outros mais querem odiar, matar ou morrer em espanhol - posso chamá-los, sem nenhum medo, de "jovens canalhas".
RODRIGUES, Nélson. In A cabra vadia (novas confissões), Livraria Eldorado Editora S.A., Rio de Janeiro, s/data, págs. 7-10.

O MILAGRE DA REFORMA POLÍTICA

(GUILHERME FIUZA - NOMINIMO)http://politicaecia.nominimo.com.br/
Por falar em reforma política, é interessante notar a fixação dos brasileiros pelos temas do amanhã ou do qualquer dia desses. A realidade da vida aqui e agora não dá o menor ibope.
Governo governar, por exemplo, é um tema que não comove ninguém. Se comovesse, o Brasil talvez estivesse de cabelo em pé com o que acontece em alguns setores. No de energia, por exemplo, a perspectiva do apagão é discutida como sexo dos anjos.
Mas dando uma olhada em volta, nota-se tranqüilamente que o assunto é daqui da Terra mesmo. Há meses o país tem seis empresas federais de energia elétrica acéfalas. A cadeira da presidência da Eletrobrás está vazia. Quem é o ministro de Minas e Energia? O substituto de Silas Rondeau até hoje não deu o ar de sua graça.
(Nota cômica: e são as autoridades ambientais as responsabilizadas pela paralisia do PAC).
O empresário Roger Agnelli, da Vale, deu o alarme: vai faltar energia no curto prazo com a atual taxa de investimentos – que todos sabem ser baixíssima, desde a tarifa populista de Dilma Roussef.
Mas o Brasil não está nem aí. O que os olhos não vêem o coração não sente. Vamos continuar discutindo o milagre da reforma política.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Além do fato: credo do otário


José Murilo de Carvalho
''A gente não é bobo''(Duda Mendonça)

1. Creio na existência do interesse coletivo, na virtude política e na justiça social.
Eu sou otário.
2. Creio que o dinheiro do contribuinte é público e é administrado pelo governo, mas não pertence ao governo.
Eu sou otário.
3. Creio no direito dos contribuintes de se recusarem a pagar impostos quando o dinheiro público for objeto de malversação pelo governo.
Eu sou otário.
4. Creio que os políticos são delegados dos eleitores e têm que prestar contas de seus atos e dar transparência a suas ações.
Eu sou otário.
5. Creio no direito dos eleitores de revogar o mandato de representantes infiéis e corruptos, mesmo na duração do mandato.
Eu sou otário.
6. Creio que os funcionários públicos de todos os escalões são servidores dos contribuintes e têm que pautar seu comportamento pelo uso honesto do dinheiro público, pela eficiência e pela civilidade.
Eu sou otário.
7. Creio que tanto assalta o patrimônio do cidadão o contribuinte que sonega imposto quanto o Estado que cobra impostos escorchantes.
Eu sou otário.
8. Creio que são tão corruptos o político e o funcionário público que cobram propina quanto o empresário que oferece propina em troca de favores.
Eu sou otário.
9. Creio que a impunidade é a madrinha da corrupção e que a prisão especial para portadores de diplomas universitários viola o princípio da igualdade perante a lei.
Eu sou otário.
10. Creio que é mais corrupto o político que compra voto abusando do poder econômico do que o eleitor que vende voto por necessidade econômica.
Eu sou otário.
11. Creio que é menos criminoso o camelô que vende produto contrabandeado para sobreviver do que o empresário que subfatura, sobrefatura, lava dinheiro e sonega imposto para se enriquecer.
Eu sou otário.
12. Creio que a República é o regime político que se define pela preocupação com a coisa pública e que o clientelismo, o nepotismo, o patrimonialismo, o mensalão são a corrupção da República.
Eu sou otário.
Otários do Brasil, uni-vos!

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 18/08/2005

Mérito e cotas: dois lados da mesma moeda


André Marenco, cientista político UFRGS *


Os argumentos de críticos e defensores de políticas afirmativas convergem em um ponto: para ambos, haveria uma oposição entre a instituição da meritocracia como regra para recrutamento acadêmico e a implantação de mecanismos compensatórios, sociais ou raciais. Adversários das cotas, retomando uma espécie de retórica da ameaça (Hirschman, 1992) afirmam que sua adoção eliminaria o mérito e o conhecimento prévio, premiando os menos capazes, com efeitos agregados sob a forma de mediocrização universitária. Defensores das cotas subestimam o significado racionalizador de instituições meritocráticas, resumindo a discussão com o argumento de que fins socialmente justos justificam a adoção dos meios necessários para atingi-los.
O equívoco de ambos consiste em não perceber a coerência existente entre meritocracia e a adoção de uma regra de cotas como procedimento para a ocupação de vagas universitárias. Em suas origens, meritocracia surge como alternativa ao status herdado pelo nascimento como critério para ocupação de postos públicos. Trata-se de substituir ascription por achievement, premiando a capacidade individual e não o berço na configuração da hierarquia social. A ironia é que vantagens adscritivas foram capazes de adaptar-se às novas regras impostas pela individualização das sociedades modernas, reconvertendo capital econômico e social familiar, em capital escolar (Bourdieu, 1989, Boltanski, 1982). Investindo, desde o ensino fundamental, na formação escolar de seus herdeiros, famílias bem providas asseguram sua continuidade no interior das instituições universitárias de maior prestígio e qualidade, que oferecem títulos e diplomas mais valorizados no mercado, reproduzindo hierarquias plutocráticas dissimuladas em capacidade intelectual individual.
A conversão de exames vestibulares em simulacros de mérito individual não deve induzir-nos ao desprezo pela relevância de regras meritocráticas, como condição para o estabelecimento de instituições racionais e impessoais. Trata-se de controlar as distorsões provocadas pela origem social, neutralizando o efeito path-dependent berço=diploma=renda.
John Rawls, o maior expoente do liberalismo político do século XX, ao apresentar sua concepção de justiça como eqüidade, ressalta que as desigualdades sociais e econômicas para serem aceitáveis, devem satisfazer duas condições: estar ligadas a posições abertas a todos, segundo condições de igualdade de oportunidades, e, beneficiar aos membros menos favorecidos da sociedade (Rawls, 1971). Quem quer ser liberal, que ao menos seja coerente, e honre o significado desta consigna.
Meritocracia constitui um sistema distributivo, que confere de modo desigual vagas e títulos universitários, premiando a capacidade, responsabilidade e talento individuais. Para que seja justo, é preciso que esteja baseado em uma efetiva igualdade de oportunidades, julgando apenas o esforço e competência individual, e não o sobrenome (o que, parece óbvio, não constitui mérito próprio). Desta forma, instituir um sistema de cotas é a alternativa eficaz e racional para assegurar um indispensável critério meritocrático, como procedimento para o recrutamento aos bancos universitários.
A probabilidade de um branco ingressar na universidade é, no Brasil, 137 vezes superior a de um negro. O percentual de negros com diploma universitário hoje no Brasil equivale ao dos Estados Unidos dos anos 40, quando leis segregacionistas estaduais impediam negros de frequentar, como alunos, universidades para brancos. Equivale ao percentual de negros com diploma na África do Sul, durante o apartheid (PNUD, 2005). Frente a estes números, questionar se existe racismo ou se a implantação de cotas raciais poderiam introduzir o racismo no Brasil, é um modo de tergiversar sobre o problema. Na ausência de oportunidades e de mobilidade social reais, conflitos raciais estão presentes da pior forma possível, traduzidos nos indicadores de violência e criminalidade, enquando nossa classe média vive seu Baile da Ilha Fiscal, falando em harmonia racial e talento individual.
Políticas afirmativas devem oferecer oportunidades de mobilidade social inter-geracional, projetando as condições para a constituição de uma ampla classe média negra, que incremente uma economia de mercado no Brasil. Trata-se de ir além da hipocrisia de falar em cursos técnicos e profissionalizantes para jovens pobres e negros, como se fosse suficiente oferecer a estes a auspiciosa perspectiva de serem, no futuro, balconistas, garçons ou recepcionistas. Teremos harmonia racial quando for corriqueiro consultar-nos com médicos negros, sermos julgados por magistrados negros, dirigidos por executivos negros e ensinados por professores negros. Mas, talvez, seja isso precisamente que amedronta nossa classe média.


André MarencoPPG Ciência PolíticaUFRGS www.ufrgs.br/cienciapolitica

Rádios comunitárias - coronelismo eletrônico de novo tipo

Estudo de pesquisadores da UnB sobre a proliferação do novo serviço de radiodifusão e seu controle por grupos políticos locais e por igrejas neopentecostais. Eles trabalham com a figura do coronelismo, do Vitor Nunes Leal, aplicada à área da comunicação.

http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=439IPB001

terça-feira, 26 de junho de 2007

Os cem dias do governo Yeda

Os cem dias do governo Yeda. Uma análise. Entrevista especial com Maria Izabel Noll para o Jornal do Instituto Humanitas da Unisinos.
Há quatro meses à frente do Rio Grande do Sul, o programa político de
Yeda Crusius tem gerado muita insatisfação e preocupação ao povo gaúcho. Além disso, a base aliada que ajudou a governadora está em constante conflito. Para onde caminha o Estado? Como ficarão as questões da saúde, da segurança e da educação? O que há de novo no novo jeito de governar que Yeda prometeu? Essas questões foram respondidas e analisadas pela cientista política Maria Izabel Noll em entrevista, por telefone, à IHU On-Line.
Maria Izabel Noll avalia as políticas econômica e pública desempenhadas nesses meses por
Yeda. Fala ainda dos conflitos que a aliança montada para elegê-la tem gerado e, principalmente, das críticas internas liderada pelo seu vice-governador, Paulo Feijó. Compara também o governo de Yeda como o de Germano Rigotto, e, brevemente, às políticas dos ex-governadores Britto e Simon e com os governos de seus colegas de partido, José Serra e Aécio Neves. Para a cientista política, “há certa timidez nessa perspectiva de o governo dizer que tem um projeto, que quer transformar o Estado” e afirma que não vê horizontes nesse projeto.
Maria Izabel Noll é doutora em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente, é professora e pesquisadora desta mesma universidade.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a sua avaliação das medidas econômicas que a governadora Yeda tem implementado no Estado nesses quase cinco meses de gestão?
Maria Izabel Noll – Houve um marco aí dos cem dias que serviu de referência àquela crise da segurança. O Governo do Estado precisa ser pensado a partir de duas perspectivas. A primeira é que a aliança levou a governadora, ou o PSDB, ao Governo do Estado. Na realidade, a polarização tradicional em termos partidários existia, muito mais, entre PMDB e PT. A polarização que se esperava no jogo eleitoral era um enfrentamento entre o PT, o partido de centro-esquerda mais representativo do Estado, com um partido de centro-direita, representado pelo PMDB, na figura de Rigotto (1). Esperava-se uma reeleição e tudo aquilo que estava mais ou menos previsto. E o que aconteceu? Aconteceu, na época, o que se chamou de reviravolta, uma mudança nessa polarização. E a governadora entrou como uma terceira força, colocando-se, em termos de discurso, como uma nova experiência, alguém que nunca tinha estado no governo, e assim poderia fugir do tradicional com o seu “um novo jeito de governar”.Por um lado, isso tinha uma dimensão de novidade. Por outro, já vinha embutida nessa perspectiva uma dificuldade que não está ligada propriamente à imagem da governadora ou a outras lideranças, que é a dificuldade de um pequeno partido ser o núcleo central de uma aliança. Inclusive, fazem parte dessa aliança outros partidos maiores, como o ex-PFL (atual democrata) e o PDT, ou seja, partidos que entraram nessa aliança e que têm, em termos Estaduais, um significado, uma força maior do que o partido central, que é o partido da Governadora [o PSDB]. E isso significa problema, porque o partido que é um núcleo da aliança precisa ter, além de um peso, uma abrangência maior e, inclusive, em termos de quadro político-partidários, um significado maior, o que não é o caso. Então, este foi, desde o início, um dos problemas desta aliança que se formou para o governo da Yeda Crusius.
IHU On-Line – E, a partir dessa aliança problemática, o que o Estado passou a assistir?
Maria Izabel Noll – Em primeiro lugar, com a questão da segurança, passados aqueles três meses, criou-se um problema com o PDT. Um partido que tradicionalmente tem um peso grande na política do Rio Grande do Sul obviamente iria querer fatias maiores de poder dentro dessa aliança. Segundo problema: o partido do vice-governador (2). Foi feita uma aliança em termos partidários e, na idéia de ampliar inclusive nesse campo do empresariado, colocou-se uma pessoa que não possui um perfil de militância política, de política partidária. Ele é um empresário, que discorda frontalmente da pessoa da governadora, seja em termos políticos, seja em termos pessoais. Então, essa foi uma outra fonte de conflito. O vice deve ser extremamente integrado a esse núcleo duro e ele age como um substituto do governador. Isso indica que ele não pode querer adquirir uma personalidade própria.Um político como Eliseu Santos (3), vice do Fogaça (4), é, por exemplo, alguém que possui uma atuação muito marcante, mas devidamente dentro dos padrões da prefeitura, ou seja, ele não está assumindo uma personalidade própria. Por sua vez, o governo da Yeda tem essa fonte constante de conflito. Hoje [esta entrevista foi realizada no dia 27 de abril de 2007] está na capa da Zero Hora uma frase bombástica (5) desse vice-governador, que pode ter razões para algumas coisas, mas que não está ciente ou devidamente enquadrado dentro do papel que ele assumiu, que é aquele que substitui o governador. Então, surge um vice que significa um risco. Ontem, na Assembléia, ele afirmou: “A governadora não sai porque tem medo do que eu possa fazer se eu assumir o lugar dela”. Isso é um negócio inadmissível. Então, esse é um ponto de conflito e eu não sei até quando ela vai conseguir administrar esse problema político muito complicado e que é uma fonte de desgaste constante.
IHU On-Line – Esse é o maior problema que ela está enfrentando?
Maria Izabel Noll – Ela tem, imediatamente, dois pontos: um é a questão da aliança político-partidária que ela fez para se viabilizar em termos eleitorais. O outro diz respeito, especificamente, aos democratas que, na figura do vice-governador, têm se constituído numa fonte de conflito constante. A questão é mais complicada por razões de ordem institucional. Não é nada específico do governo Yeda, ou seja, já deu para sentir nos governos anteriores e provavelmente sentiremos nos próximos. É o que diz respeito a todos os governos estaduais, a partir da constituição da Constituição de 1988, que teve explicitamente um projeto de descentralização política, de revalorização do município, onde foi possível restabelecer a idéia de federalismo (6), onde o Estado, como ente federativo, perdeu poder. Hoje em dia, existe muito mais um vínculo entre a União e os municípios. Não é a toa que hoje os prefeitos têm um papel muito mais visível: estão todos os dias na mídia, em Brasília, quando Lula os convoca.Além disso, as prefeituras recebem muito mais recursos do que recebiam há 20, 30 anos atrás e que se transformaram realmente um ente federativo. Com isso, o Estado perdeu poder e transformou-se quase num repassador de recursos, o que lhe tirou poder político. A não ser com estados que realmente apresentam uma autonomia muito grande, como São Paulo, por exemplo. Não se vê ninguém dizer que o Serra (7) não tem poder político, porque ele tem. Mas isso acontece em estados que possuem muito recurso. O Rio Grande do Sul já teve uma economia mais promissora, abrindo-se agora em termos de agronegócio, mas é um Estado que durante muito tempo teve problemas econômicos complicados, inclusive de saber qual seu perfil econômico. E também alguns bloqueios em termos de atrair capital, de atrair empresas.Claro que estivemos nos comparando a estados pequenos como Tocantins e Piauí. O Rio Grande do Sul tem uma importância sim, um passado, toda uma tradição. Agora, é um Estado que há 15, 20 anos tem problemas de projetos econômicos, de definir o seu perfil e de recursos, porque está bloqueado em termos de fazer investimentos importantes nessa área de infra-estrutura, de fazer investimentos pesados que ficaram profundamente amarrados pela negociação da dívida. Os outros estados também estão, mas no Rio Grande do Sul particularmente há um estrangulamento no que se refere à questão da negociação da dívida. Então, é um Estado que vem já há muitos governos, eu diria já desde o Governo Britto (8) com um problema desses, que, de certa forma, foi sendo empurrado com a barriga.Para a governadora que tem um projeto onde entram investimentos, onde a idéia de atrair capital de empresas do setor privado depende muito de uma melhoria de infra-estrutura, se não esse negócio amarra, é bloqueado. Então, há uma questão institucional de fundo e que não vai ser resolvida nem a curto nem a médio prazo: é a negociação da dívida, junto com a capacidade de investimento, com a definição de um perfil econômico para o nosso Estado. Precisamos saber quais os setores que o Estado vai priorizar, ou se vai simplesmente colocar-se como um administrador.De certa maneira, quase que caminhando no sentido contrário ao da Política Federal, onde há investimentos pesados no setor social, educacional, há, ao mesmo tempo, essa moldura em que a União tem um acesso mais direto aos municípios e pode dar-se ao luxo de passar por cima do Estado.
IHU On-Line - O que ficou para o Estado, como ente federativo, poder trabalhar?
Maria Izabel Noll – A questão da segurança, onde também há uma pressão muito grande de municipalizar. Muitos municípios, inclusive, já fizeram isso. Para a grande política, no sentido de pensar em investimentos de infra-estrutura, faltam recursos. Então, há um bloqueio, muito complicado, de recursos e a situação é difícil. É muito difícil saber, com esse bloqueio de recursos, como o governo vai circular. Essa é a perspectiva mais econômica.
IHU On-Line - E a perspectiva política?
Maria Izabel Noll – Ela passa pela questão das alianças do PSDB, como um pequeno partido, com pequenos quadros, com uma experiência muito reduzida e com uma aliança muito heterogênea e, ao mesmo tempo, com partidos que têm um peso muito grande, como o PDT, que já esteve no governo, que tem muitos líderes e com uma trajetória muito diferenciada, com ideologias diferentes do PSDB, mas que terminaram fazendo alianças por razões eleitorais. Então, esse foi uma outra fonte de conflito. Outros partidos poderão também se incompatibilizar, como o PTB. Isso está em aberto, pois trata-se de uma aliança complicada.
IHU On-Line – Tivemos muita polêmica na área de segurança. Como a senhora avalia a atuação de Enio Bacci e como ficará a segurança nas mãos de José Francisco Mallmann?
Maria Izabel Noll – Realmente a minha avaliação é mais impressionista do que qualquer coisa. A política de segurança, da forma como toda a coisa tem sido levada, tornou-se, talvez, a preocupação central da população. Em alguns momentos foi a inflação, em outros foi o desemprego. Hoje a segurança é o grande tema. Então, conseqüentemente, os governos não podem ignorar essa questão. Então, o que aconteceu? A segurança no nosso caso aqui tem sido, especialmente, de uma política estadual, não tendo acontecido o que no Rio de Janeiro está mais evidente, com uma vinculação federal. E também não tem sido cogitada a questão da municipalização. Então, a segurança tem sido o elemento mais presente de uma política verdadeiramente de responsabilidade do Estado. Como é uma secretaria que tem muita visibilidade, houve politicamente a atuação do Enio Bacci, que é um político e não um técnico, tendo sido ele requisitado para administrar tecnicamente. Ele é representante de um partido e foi para a secretaria para fazer política. E a forma como ele tratou a questão da segurança foi política.
IHU On-Line – E qual é a diferença dele em relação ao Mallmann?
Maria Izabel Noll – Ele, como um funcionário, como alguém da Polícia Federal, vai administrar de forma mais técnica, fazendo-se, aqui, uma avaliação muito superficial e muito precoce do que vai ser a atuação dele. Agora, a visibilidade de uma secretaria como essa dificilmente deixará passar impune qualquer ação mais mirabolante. Claro que no caso do Bacci havia um uso político, pois ele é um político, é um deputado. E, antes de tudo, ele estava lá por indicação de partido e como um político. Ele agiu dessa forma e é a forma como ele sabe agir.
IHU On-Line – E o que a senhora acha da forma como Bacci saiu?
Maria Izabel Noll – A forma como foi tratada a mudança toda e a saída de Bacci foi muito mais política do que qualquer outra coisa. Nesse caso, a busca de um técnico, de alguém que não tenha um vínculo político, foi a busca de uma solução técnica para um problema que a governadora provavelmente viu que se tratado de forma política causava problema, ou pelo menos não ia naquela direção que a lhe interessava. Então, eu acho que essa é uma calibragem que ela tem feito. Tudo dentro de um certo estilo, de uma certa maneira de fazer, que muda radicalmente.
IHU On-Line – Como a senhora compara o Governo Rigotto com o Governo Yeda?
Maria Izabel Noll – É, absolutamente, como a água e o azeite. O Rigotto era o negociador, o anti-conflitos; mostrava uma imagem que eleitoralmente o viabilizou. E a Yeda não: ela é um estilo de governo que quer impor a sua marca, que quer dizer: “Eu faço dessa forma e não gosto que seja de outra”. O grau de negociação dentro do qual ela age é muito menor.
IHU On-Line - E qual a conseqüência disto?
Maria Izabel Noll – O numero de conflitos são maiores.
IHU On-Line - Como a senhora avalia a gestão de Yeda do ponto de vista da educação?
Maria Izabel Noll – A educação tem dois pontos: o primeiro é pensar a educação, como ela está tentando. A pessoa que ela colocou na Secretaria da Educação (9) é uma pessoa conhecida, tem larga experiência, e sei que ela levou pessoas bastante influentes para trabalhar com ela. Isso no que diz respeito ao grande projeto de uma outra questão complicada. Educação é um campo onde precisa haver investimento. Não há educação sem disposição de investimento e investimento a fundo perdido. E a impressão que me dá é que essa educação e esse investimento a fundo perdido estão sendo feitos muito mais por cima, entre União e município, e muito menos por uma estratégia de governo estadual. O governo estadual está agindo quase como se fosse como um bombeiro, tentando apagar focos de incêndio. Por exemplo: se faltam "x" professores, então vamos fazer o remanejo, que sempre é um processo traumático. Isso aconteceu também no governo Simon (10), quando foram remanejados todos os professores. E isso quebrou uma lógica e uma articulação que, necessariamente, nem sempre dá certo. Eu acho que esse processo é novo e está em curso e sempre é um processo traumático. O certo é que, por parte do governo estadual, nem a educação nem a saúde vão receber grandes investimentos, porque não são prioridades e porque não há recursos para isso.
IHU On-Line – Não há chances dessa política pública melhorar?
Maria Izabel Noll – Essa política pública pode melhorar sim, por razões que fogem à questão estadual, que é o repasse direto ao município, porque aí sim existem projetos, políticas, outros pontos que vão poder dar conta de indiretamente beneficiar o Estado. Acho que a política estadual está muito presa à renegociação da dívida, e a idéia de como resolver a questão da segurança pública e o resto vai ser deixado ao sabor da circunstância.
IHU On-Line – Como tornar mais rentáveis aquelas fontes de que o Estado ainda dispõe?
Maria Izabel Noll – Com a abertura de capital do Banrisul, visivelmente compactar secretarias e órgãos. Há uma estratégia muito forte de ordem fiscal para ver como administrar isso do que propriamente a idéia de implementação de políticas públicas. Eu não vejo, em curto prazo, a idéia de haver um grande projeto de investimentos, porque o Estado vai jogar pesado. Podemos dizer o seguinte: o Estado não vai fazer isso porque está com recursos escassos. Por outro lado, nenhum governo pode privar-se da idéia de dizer que pretende fazer isso ou aquilo. Há certa timidez nessa perspectiva de o governo dizer que tem um projeto, que quer transformar o Estado, mas não vejo no horizonte esse projeto. A preocupação, atual e exclusiva, é fiscal, o que o torna um governo de apagar incêndio. Falta um projeto definido de dizer que o novo modo de governar da governadora ainda se constitui em algo que está vazio de conteúdo.
IHU On-Line – Então, para a senhora, o que é esse novo modo de governar?Maria Izabel Noll – Por enquanto, tem sido administrar fiscalmente os recursos do Estado e tentar, junto ao Governo Federal, ganhos maiores e tentar minimamente renegociar. E isso não é fácil, porque toda negociação política requer muita habilidade, abertura, concessão e talvez a nossa governadora, de todos as figuras do PSDB que estão no governo, leia-se o Serra, Aécio (11), é a que possui uma perspectiva mais estrita e menos flexível com o Governo Federal. Não sei se isso é bom em termos de administração. Estando no governo, a questão partidária deve ficar muito mais restrita a um segundo plano e o governador precisa ser o governo que trabalha o interesse do conjunto do Estado. Isso ainda não mostrou muito bem até que ponto está sendo impeditivo ou está sendo positivo.
Notas:
(1) Germano Rigotto: Foi governador do estado do Rio Grande do Sul entre 1 de janeiro de 2003 e 1 de janeiro de 2007. No seu mandato, a economia do Estado obteve fraco desempenho, principalmente em virtude da diminuição da cotação do dólar no mercado nacional que prejudicou as exportações do Estado, causada pelo aumento das exportações nacionais.
(2) Paulo Feijó: Vice-governador do Rio Grande do Sul.
(3) Eliseu Santos: atual vice-prefeito da cidade de Porto Alegre. É médico, formado na Faculdade de Medicina da UFRGS.
(4) José Fogaça: É, desde janeiro de 2005, prefeito da cidade de Porto Alegre. Formado em Direito pela PUC-RS.
(5) A capa de Zero Hora do dia 27 de abril de 2007 traz a seguinte manchete: “Feijó ataca Banrisul e Piratini o chama de desequilibrado”.
(6) Federalismo: é uma forma de governo que consiste na reunião de vários Estados num só, cada qual com certa independência, autonomia interna, mas obedecendo todos a uma Constituição única.
(7) José Serra: atual governador do estado de São Paulo.
(8) Antônio Britto: é um jornalista e executivo brasileiro, que exerceu os cargos de deputado federal, ministro da República e governador do estado do Rio Grande do Sul (1995-1999)
(9) Mariza Abreu: Atual secretária de Educação do Estado. Foi secretária de educação do município de Caxias do Sul.
(10) Pedro Simon: é um advogado, professor universitário e político brasileiro. É atualmente senador pelo estado do Rio Grande do Sul, filiado ao PMDB. Foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul (1987-1990).
(11) Aécio Neves: Foi deputado federal por Minas Gerais e presidente da Câmara Federal no biênio 2001/2002. Em 2002, foi eleito governador do estado de Minas Gerais em primeiro turno e reeleito em 2006 também no primeiro turno.